domingo, 28 de novembro de 2010

E de repente


E de repente, a cidade veste-se de branco, pronta para receber o Inverno já bate à porta. Vem de longe, com as malas às costas. Ninguém sabe de quanto tempo é a estadia, mas ninguém se parece importar. O vento canta uma música que aprendeu em terras longínquas, desconhecidas, e os flocos de neve dançam lentamente em direcção à Terra. A noite vai-se deixando ficar, cada dia um pouco mais, saudando este velho amigo de quem já sentia a falta. É ele o único que, como ela, consegue acender luzinhas, cobrindo a cidade de um tom amarelo e misterioso.   
Só os sapatos parecem descontentes, rangendo a cada passo, queixando-se do frio em que mergulham.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Amanhã vai nevar.

Wrocław

A cidade amanhece cinzenta. Não o cinzento que traz chuva, mas antes o cinzento das nuvens traquinas que descem à Terra para espreitar o que se faz cá por baixo. Dentro de casa, no quentinho, a música sai das colunas, colorindo o dia. Não tarda sairemos para esse cinzento, os casacos apertados a esconder-nos o sorriso - mas ele está lá, não nos encontrássemos nós num "Feliz para Sempre", tão comum das cidades de conto de fadas. E de facto, não se pode dar outro nome a Wrocław, a cidade das pontes e dos gnomos. Não, não estou louca. Numa janela, num poste de iluminação, e em outros cantos e recantos, tanto na cidade nova, onde os prédios altos, de cores escuras se elevam, como na cidade velha, com as típicas casinhas coloridas, os muros de tijolo vermelho, a catedral, os gnomos espreitam, sorrindo, matreiros.

Wrocław. Gostei mais do que a própria Cracóvia, a Cracóvia imponente, majestosa, altiva Kraków, de que aqui não falei ainda por falta de tempo. Sendo das poucas cidades que não foi totalmente bombardeada e destruída durante a guerra, preserva todas as construções desse tempo, tornando-a, como diz um amigo meu, "bonita demais". os monumentos, os pontos históricos, acotovelam-se rua atrás de rua, perdendo-se o conforto aconchegante que se sente quando se está em casa. Kraków é bonita para quem viaja, mas demasiado turístico para se viver. Do outro lado, temos Wrocław, que em tudo contrasta com Kraków, já que, mais do que olhar e fotografar aquilo que se eleva diante de nós, temos de observar realmente, estar eternamente atentos aos pormenores. E não há maior alegria que descobrir de repente um gnomo adormecido no seu posto, que logo ganha vida e desata a correr pela nossa imaginação, lembrando-nos do tempo em que erámos pequeninos, que o mundo era cor-de-rosa e comíamos nuvens de sonhos em pauzinhos, em feiras populares onde a música tocava continuamente até ao entardecer.

domingo, 14 de novembro de 2010

Aushwitz



Several million foreigners in a condition of slavery, overworked, despised, undernourished, badly clothed, and badly cared for, cut off from all contact with their native land. They were not 'typical prisoners', they did not have integrity, on the contrary they were demoralized and depleted....For them escape was difficult and extremely dangerous; besides being demoralized, they had been weakened by hunger and maltreatment; they were and knew they were considered worth less than beasts of burden. Their heads were shaved, their filthy clothes were immediately recognizable, their wooden clogs made a swift and silent step impossible. If they were foreigners, they had neither acquaintances nor viable places of refuge in the surroundings....The particular, but numerically imposing, case of the Jews was the most tragic....In what direction could they flee? To whom could they turn for shelter? They were outside the world, men and women made of air.
Primo Levi

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Łódź

Fim de semana prolongado - sexta-feira, livre; segunda, feriado; terça, tolerância de ponte nas faculdades, um hábito comum na Polónia, para que os alunos tenham tempo para ir a casa. Parece-me uma ideia mais que óptima, umas mini-férias nunca fizeram mal a ninguém. E que melhor maneira para aproveitar o tempo que viajar? 

Vejo-me assim no meio de uma estação apinhada de gente à espera para comprar os bilhetes. O dia 1 de Novembro é o dia de todos os santos, um dia muito importante para os habitantes deste país, que se deslocam assim às suas terras-natal, para saudar os seus falecidos. Coloco-me na fila mais curta, mas mesmo assim estão umas trinta pessoas à minha frente. Falta meia hora para o comboio, e de certa forma sei que não vou conseguir. A confusão é muita. Há pessoas a passar de um lado para o outro,  atrás de mim, à minha frente, a tentar colocar-se nas filas que mais lhes convém. As malas rebolam por cima dos meus pés, contra as minhas pernas, as pessoas empurram, umas mais gentilmente, outras mais à bruta. Faltam quinze minutos, a linha à minha frente não parece ter sequer mexido. Largo tudo e corro para o cais de embarque, o bilhete, compro-o no comboio. 

No cais, mais um mar de gente. "Matem alguém se for preciso, diz a minha parceira de viagem, mas entrem no comboio!". O motivo de tal aviso? Na Polónia os bilhetes têm uma validade de dois dias, pelo que arranjar lugar num fim-de-semana em que toda a gente parece estar a viajar, é uma pequena guerra civil. O comboio aproxima-se, as pessoas apertam-se. Corro para a porta. "Avariada". Corro para a outra. Está muita gente à minha frente, mas consigo entrar. Três lugares vazios. Perfeito. Mas nem todos têm a mesma sorte, e entre as cadeiras, há quem viaje em pé.

Quatro horas e meia de viagem até Łódź. No entanto, o fim-de-semana promete. Viajo com duas raparigas croatas, e juntar-no-emos a  mais um rapaz croata, que nos dará alojamento. Uma portuguesa entre croatas. A ideia não me assusta. Estou mais que habituada a estar entre os turcos, as espanholas, e, claro, entre polacos. Não perceber o que se fala à minha volta já faz parte do meu dia-a-dia, e de resto, fala-se inglês, que já vem tão espontaneamente como o português. 

Łódź foi uma cidade industrial, pelo que não há belos monumentos para serem vistos. Há, essencialmente, fábricas antigas e parques, e uma pequena zona associada ao Holocausto. Está situada em Łódź a última estação de comboio a levar judeus para Aushwitz, assim como o último ghetto judeu. Infelizmente, não cheguei a visitar estes espaços, mas há outras coisas para ver. Na Ulica Piotrkowska, a rua principal, as casas têm uma particularidade interessante - cada andar foi construído num estilo diferente, provavelmente para mostrar a riqueza da cidade. Também abundam, aqui, as estátuas dinâmicas, como eu lhes chamo, e que é como quem fala naquelas estátuas em que é possível interagir com as personagens - de destacar a estátua de um escritor que criticou a cidade e a sua governação, e que é agora detestado pelos habitantes, que pisam o pé da estátua e lhe apertam o nariz sem reservas, como bem se pode ver pela alteração de cor nestas zonas.

Ao centro da estrada, bem entre as faixas destinadas ao trânsito, há uma faixa com os nomes de todos aqueles que contribuíram para a construção rua. Estacionados junto ao passeio, carrinhos empurrados por homens em bicicleta, algo diferente, e, provavelmente, agradável de se experimentar. Algures a meio da Piotrkowska, a escola de cinema de Łódź, em frente da qual o passeio se reveste de estrelas com os nomes de actores e realizadores importantes que ali estudaram. Roman Polanski é um deles, sendo que este tem ainda direito a uma rua sua, não porque o Estado tenha decidido dar-lha, mas tão somente porque ele a decidiu comprar, um dia. 

Nomes inscritos no chão é uma coisa comum em Łódź, portanto. Falo agora do Memorial Park, um parque feito em memória do Holocausto. Desta vez, o protagonismo é dado aos judeus que sobreviveram e que estiveram presentes na abertura do parque, quatrocentos e poucos de número, e a todos aqueles que ajudaram a salvar os judeus, adoptando-os como seus filhos e dando-lhes, assim, identidade ariana, sujeitando-se a morrer juntamente com o resto da família. 

Mas mudemos para coisas mais alegres. Temos a Opera, espaço aproveitado para umas skatadas, devido ao piso lisinho, às escadas e aos curbs que por ali se encontra. Infelizmente os skaters estão a almoçar, sentados à sombra de umas árvores, que hoje até está sol, e a temperatura chega aos quinze graus. Do edifício sai música clássica, e rio, ao pensar na Casa da Música e como é quase irónico  que espaços dedicados a este tipo de musica acabam por se ligar à cultura de rua. Mas, música é arte, e as artes sempre estiveram interligadas.

"Nie mowiem po polsku"

...é, provavelmente, a frase que mais uso diariamente, para explicar àqueles que me abordam que o polaco ainda não consta no meu quadro linguístico. 

Falar polaco, é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta à minha frente nesta viagem, pelo que já lhe devia ter feito referência há muito tempo atrás. Começamos pelas letras, um amontoado de consoantes seguidas que não parecem fazer qualquer sentido, e que no fim acabam por se revelar como uma quantidade abismal de chês e jês diferentes. Depois vêm os sons que nos confundem, como o -ch que se lê -h (não o nosso, que o nosso não se lê, mas o dos ingleses), e as reviravoltas entre o -o e o -ó, que em Portugal o -o lê-se -u, e o -ó lê-se -oh, se é que me faço entender, e na Polónia é ao contrário, o -ó é -u, e o -o é -oh. E se isto parece suficiente, acrescente-se as cedilhas em vogais (ą, ę) e os acentos em consoantes (ń, ś, ź) e as letras com adereços novos (ł, ż)

Segue-se a gramática. Para quem estuda alemão ou latim isto não é novidade, mas para mim, que sempre me fiquei pelo francês e o inglês, foi um choque tremendo quando vi que cada palavra tinha mais sete variantes. Casos. Não me perguntem porque é que eles os usam, continuo sem perceber, só sei que dão sentido às frases, que os polacos não têm artigos e é assim que se fazem entender. Isto torna-se numa grande confusão sempre que queremos usar o dicionário, que só tem a palavra no "nominativo", que é como quem diz a forma principal. 

Como se isto não fosse já confuso que baste, decidiram complicar-nos com os dias da semana, que a quinta e sexta-feira deles são czwartek e piątek, que significa, respectivamente, quarto e quinto. Ou seja, a quarta deles é a nossa quinta, a quinta deles a nossa sexta. Bonito. Só dá para descontrair um bocado quando olhamos para o domingo deles, niedziela, que significa, à letra, não fazer nada, ou para o expressão que usam para "andar de barco", pływać na statkiem, nadar estático.